Méritos

Gabriela Pontes
5 min readNov 17, 2022

--

No filme Enola Holmes 2, vemos que Enola agora tem um escritório de investigação, mas que não é ainda levado a sério. Ela sonha em ter seu nome estampado nos jornais com elogios ao seu trabalho, quer que seu trabalho seja reconhecido pela qualidade que tem. Ela resolve um grande caso, que coincidentemente estava entrelaçado com o caso de seu irmão, Sherlock, e se ajudam em alguns momentos. Ao final do filme, ele sugere uma parceria fixa, mas Enola recusa por entender que estaria sempre à sombra de Sherlock. Será que alguém pode culpá-la por pensar assim? Afinal, quem de nós não quer receber reconhecimento pelos seus feitos?

Há muito, me considero uma pessoa competitiva. Ao mesmo tempo, sei que isso é algo ruim e que eu deveria dar atenção a esse traço, porque isso poderia prejudicar minha capacidade de amar e me alegrar no outro. Se eu estiver sempre querendo ganhar em tudo, como posso me alegrar quando um amigo levar a coroa? Isso é preocupante, porque a Escritura é clara ao dizer para nos alegrarmos com os que se alegram (Romanos 12:15). Também tenho há muito tempo a consciência do desejo pela aprovação das pessoas, e também sempre entendi que deveria tratar isso. Afinal, se sempre quiser ser aceita por todos, em algum momento teria de sacrificar ideais sagrados da minha fé, e isso não poderia acontecer. Não é possível agradar a dois senhores (Mateus 6:24), alguém sairia desagradado.

Mas recentemente, enquanto lia Gálatas Para Você, de Tim Keller, percebi algo mais profundo. Keller discorria sobre a Graça de Deus e como o sacrifício de Cristo cobre nossos pecados, nos confere perdão e recompensas eternas, e percebi que isso não cativava meu coração tanto quanto deveria. É a mensagem do Evangelho, seu “ápice” como diz o autor, onde o Pai nos adota por meio dos ‘méritos’ de Cristo, que são conferidos a nós.

E meu coração não estava cativado por isso.

Meu coração não estava se alegrando na mensagem mais bela, amorosa e graciosa que já foi escrita. Como um Deus de amor e reconciliação enviou seu Filho Amado para que nós também nos tornássemos filhos amados.

Para contextualização, na carta aos gálatas, Paulo repreende aquela comunidade pelo desvio do Evangelho verdadeiro de Jesus. Aquela igreja se afastou da mensagem da Graça. Os judeus insistiam que aqueles gentios deveriam seguir os ritos e lei judaicos para alcançar salvação, o que era diferente do que Paulo havia já ensinado àquela igreja, que o único meio de salvação era a fé no sacrifício de Jesus, que pagou pelos nossos pecados e nos conferiu a condição de filhos adotivos de Deus. Eles estavam se desviando do caminho da fé e buscando a salvação por meio das obras que realizavam. Keller diz: “É como se nos fosse dado um presente e o devolvêssemos a quem nos presenteou para podermos lutar até fazer por merecê-lo” (p. 101, 102).

Em sequência, o autor continua explicando o ensinamento que Paulo entrega aos gálatas:

“Ainda assim, é muito fácil e comum pensar em nossa salvação […] só como a transferência dos nossos pecados de nós, mas não como a transferência dos direitos e privilégios do Filho para nós. Pensando assim, na verdade, nos consideramos apenas ‘meio salvos pela graça’. Podemos obter o perdão, mas agora temos de ser bons na vida para fazer por merecer e manter o favor e as recompensas de Deus. […] Pensaremos que nossas dívidas foram apagadas, mas que nos cabe registrar boas ações em nosso carnê a fim de que Deus nos ame e aceite. […] Mas nosso carnê foi apagado e nele Jesus anotou sua justiça, da primeira à última página. Nossa herança não é um prêmio a ser ganho. É um presente de Cristo.” (p. 103, 104)

Quão constrangedor é pensar que não existe nada de bom que eu possa fazer que torne a salvação um mérito meu. Não existe tempo de oração, valor de esmola, quantidade de almas, ou qualquer outra coisa que possa fazer com que Deus olhe para mim e diga: “Gabriela, parabéns. Você conseguiu merecer ser salva.” E esse foi o novo pecado revelado.

Meu coração não se alegrava na mensagem da adoção de Deus, porque eu não buscava meramente a aprovação, mas também o mérito. Não bastava saber que tenho a aprovação permanente de Deus por meio de Cristo — eu queria merecer essa aprovação. E isso é impossível!

E eu sei que isso não é algo só meu. Nas novas produções de filmes e livros, quantas protagonistas não são mulheres inteligentes e obstinadas que se sentem invisíveis e subestimadas e buscam provar seu valor aos outros? Enola é apenas um exemplo disso. Elas não são a causa do problema, mas a demonstração de um desejo incessante do coração humano de fazer por merecer. De receber os elogios, os prêmios, os “oh, minha nossa!”, os “que incrível!”.

Quanta vaidade! Quanto correr atrás do vento!

Além de afetar a nossa vida cristã, isso também afeta nossas atividades diárias. Quando, por exemplo, trabalhamos com essa disposição no coração, não apenas desonramos a Deus, mas também colocamos sobre nós o fardo pesado de sempre buscar sermos os melhores do ramo, os que todos olham com admiração, e a qualquer sinal de dificuldade ou fracasso nos desesperamos. Pensamos na grande farsa que somos, e o desejo de desistência aparece. Que grande tormento inútil! Se ao menos soubéssemos que o trabalho é dádiva do Senhor e que é possível se alegrar no serviço! Se ao menos tivéssemos contentamento suficiente no Senhor para trabalhar de forma dedicada com o propósito de honrá-lo e servir bem ao próximo em suas necessidades! Mas não, buscamos o impossível a fim de afagar nosso ego.

Diante disso, o que o Messias nos apresenta é que felizes são os pobres de espírito (Mateus 5:3) — aqueles que reconhecem sua miséria, mediocridade e necessidade de salvação. Felizes são aqueles que não buscam o cansaço inútil de merecer aquilo de bom que se recebe, mas que estendem as mãos conscientemente humildes ao Deus Pai, rico em amor e graça, que abre os braços para aqueles que não tem qualquer coisa boa por merecer, e nem como fazê-lo. Felizes os que se lançam ao amor puro e imerecido que nos é entregue pelos méritos de outro, do Filho Amado de Deus. Felizes os que entendem que não existem méritos próprios que fossem capazes de alcançar o amor e a aprovação do Eterno, e os méritos de Cristo são os únicos que alcançam a suficiência.

Oro para que o Senhor liberte nosso coração do orgulho, da vaidade e da meritocracia que muitas vezes nos domina, fazendo com que recusemos a obra amorosa de Jesus e busquemos um mérito que nunca teremos. Que ele nos dê a paz, que faz com que vivamos nossas vidas sem buscar provar nada para ninguém, mas “servindo de boa vontade, como ao Senhor e não como a homens” (Efésios 6:7). Que o Senhor nos faça pobres de espírito e abra nossos olhos e entendimento, para que haja alegria e contentamento em recebermos, imerecidamente, os méritos de Cristo — “o Cordeiro que foi morto” e é de fato digno eternamente “de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor” (Apocalipse 4:12) — em quem reside todo o nosso valor, salvação e esperança. Amém.

--

--