Museu Pessoal

Gabriela Pontes
5 min readJun 24, 2021

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Abri os olhos e me vi em uma sala. Ela era profunda e espaçosa, não tenho certeza se cheguei a ver o final dela de primeira. A iluminação era fraca, mas suficiente. A sala era cheia de quadros nas paredes e esculturas dispostas em fileiras.

Em um primeiro momento, não reconheci nada do que ali havia. Senti como se estivesse em um local aleatório.

Até que vi um vulto passando no canto da sala, rapidamente.

Não, não era um vulto exatamente. Era diferente, mais luminoso do que um vulto.

Talvez seja mais seguro chamar de um espírito.

Curiosa, comecei a caminhar na sala, na direção a que vi o espírito se dirigir. Então, comecei a chegar mais perto das esculturas.

Ao me aproximar delas, as coisas começaram a me ser mais familiares. Os quadros nas paredes tinham cenas da minha vida, memórias a que eu me agarrava, que tinham um valor afetivo.

Ao ver os quadros, eu ganhava mais compreensão do que era a escultura de sua proximidade. Elas ganhavam mais forma, meu cérebro passava a perceber mais detalhes, mais especificidade.

Observá-las era angustiante, ao mesmo tempo em que eu não sentia vontade de parar. Poderia ficar muito tempo ali, olhando, ponderando, admirando.

Então, num susto, vi o espírito de novo. Dessa vez, ele se dirigiu mais à frente. Fui atrás, apesar de tentada a continuar ali.

Na próxima sessão, foi semelhante. Novas memórias, novas esculturas, mas a mesma sensação a observá-las.

Mesma, não.

Um pouco mais intensa.

Ambas as sensações.

O desejo por observar era um pouco mais forte do que a angústia.

Nessa sessão também, as esculturas pareciam ter mais detalhes. Eram mais desenvolvidas, mais detalhadas e bem estruturadas.

Estava fascinada com tudo aquilo.

Novamente pega de surpresa, vi o espírito se dirigindo mais à frente.

Esse mesmo processo se repetiu diversas vezes. O fascínio, os detalhes, as formas, tudo aumentava enquanto o espírito me levava para as sessões mais próximas ao fundo da sala.

A angústia também aumentava, mas não na mesma proporção do fascínio.

Era tudo muito bonito, bem feito, sem qualquer defeito em suas formas. Eram atrativos, cativavam.

Além de que alguns pareciam muito antigos, e ainda assim, pareciam intocados. Fascinante!

Então, vi o espírito se mover para a última escultura.

Fiquei meio surpresa ao vê-la. Era enorme, majestosa, com uma quantidade absurda de detalhes. Quanto mais a olhava, mais percebia coisas novas. E, pensando nas esculturas anteriores, todas tinham alguma familiaridade a essa. Como se todas tivessem pedaços dela.

Dessa vez, o fascínio e a angústia tinham o mesmo peso dentro de mim. Igualmente enormes, mas viciantes.

Então, alguém ligou mais luzes.

Olhei para a porta no início da sala, e lá havia um homem com uma mão no interruptor (que eu nem sequer havia enxergado ao entrar), e na outra uma marreta.

A sensação que tive ao olhar para ele foi diferente. Um misto de medo, vergonha por ter alguém em um lugar que me parecia estranhamente íntimo,

e de amor.

O amor não vinha exatamente de mim, mas eu sentia isso ao olhar para ele.

Sua expressão era um pouco confusa. Ele parecia tanto bravo quanto compassivo. A mão que segurava a marreta parecia tensa, transpassava raiva; mas seus olhos eram bondosos, radiantes.

Ele começou a se mover pela sala. Olhava as esculturas, os quadros, não perguntava nada. Permanecia em silêncio.

Mas seu silêncio exalava amor, paz e alegria.

Inexplicável, devo admitir.

À medida que ele começava a se aproximar de mim, ele me parecia mais belo. Fazendo uma comparação com todas as esculturas que eu havia admirado, ele parecia mais belo do que elas.

Mas não é para tanto também, afinal tinha uma variedade muito grande no local…

Então, ele parou de se aproximar, voltou para o início da sala e se dirigiu à primeira escultura. Posicionou suas mãos, segurando a marreta e derrubou a primeira.

Comecei a chorar em desespero. O que ele pensava que estava fazendo????

Corri em sua direção, gritando que ele parasse com aquilo. Tudo aquilo era muito importante para mim!!!

Agarrei suas mãos.

— O que você está fazendo?!, perguntei, pasma com aquele absurdo, com lágrimas nos olhos.

Olhei em seus olhos.

Eram mais bondosos de perto.

Era mais belo de perto também.

Fiquei extasiada por um momento. Não conseguia falar mais nada.

Larguei suas mãos e não consegui mais impedi-lo.

Ele fez um estrago naquela sala. Havia pedaços para todos os lados, a poeira se alastrou. Apesar de desesperada, permaneci imóvel.

Ele não tocou nos quadros, por algum motivo.

Mas as esculturas? Totalmente sem esperança. Todas sendo destruídas, despedaçadas pelo chão, sem qualquer chance de reconstrução.

Ele, então, parou diante da escultura ao fundo. Olhou para mim, e eu me aproximei lentamente.

Quando olhei para frente, vi rachaduras nela. Aproximei-me rapidamente, toquei e olhei de perto para elas.

Aquilo não estava ali antes.

As esculturas que ele destruiu tinham pedaços daquela, como eu disse. Cada parte que eu havia visto repetida pela sala agora apresentava uma rachadura, como se elas estivessem realmente interligadas de algum modo.

Olhei para ele, e, sem falarmos nada, comecei a entender.

Aquela era a raiz. Todas as esculturas eram insignificantes perto daquela última, mas ela ganhava proteção e força pelas outras. Não é estranho pensar nisso, visto que aquela parecia ser bem mais antiga que todas as que estavam agora destruídas.

Uma culpa, uma vergonha e uma angústia mais forte do que anteriormente, me invadiram. Comecei a chorar copiosamente diante de toda aquela situação.

O homem, então, largou a marreta no chão e me abraçou. Fiquei um pouco confusa, mas nunca havia me sentido mais em casa do que naquele momento.

Depois de alguns momentos de consolo silencioso, ele se afastou, olhou-me com olhos extremamente graciosos e se virou para a última escultura.

Essa ele não destruiu. Na verdade, com uma força que eu não sabia que ele tinha, ergueu a escultura, tirou do seu pedestal, e a colocou no chão.

Olhei para ele sem entender, ele me olhou de volta por um momento e depois olhou para o pedestal novamente.

Agora era um trono.

Ele então se direcionou a ele, se sentou,

e a escultura se desfez.

Ela não apenas quebrou, ela se tornou como areia e sumiu.

Olhei ao meu redor e vi todos os pedaços se desfazendo da mesma forma e esvaindo da sala.

Algo mais aconteceu.

Olhei para os quadros, e agora o homem estava nas cenas representadas.

As cenas não mudaram, mas ele foi acrescentado a elas.

Não sei se diria acrescentado, mas revelado.

A perspectiva que tive delas mudou também. As cores estavam mais vivas e mais harmoniosas. Havia um novo sentido a todas.

Toda a angústia que eu havia sentido olhando para as esculturas não existia mais.

Amor, paz e alegria.

Tudo se resumia a isso agora.

A sala ganhou um brilho novo. Estava mais vazia agora, mas mais completa do que antes.

Olhei para o fundo da sala, para o trono, onde o homem continuava sentado. Ele estava mais belo do que antes, mais majestoso, fascinante, irradiante. E, dentro de mim, senti meu coração, que doía de alegria extasiante, clamar mais forte do que qualquer coisa que eu já havia sentido antes em minha vida:

— Vida longa ao único Rei digno do trono!

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