Independência ilusória

Gabriela Pontes
5 min readSep 30, 2021

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Esse texto foi escrito para o Instagram dos meus amados amigos do grupo Koinonia. Para acessar a postagem clique aqui. :)

ao fundo o céu, em primeiro plano, duas mãos estendidas uma para a outra de forma vertical.

Você deseja a independência? A ideia de não depender de qualquer pessoa para qualquer coisa te atrai? Você acredita que a vida é melhor se for assim? Mas o que significa ser independente? Quanto nós realmente conseguimos viver sem precisar de alguém? Já parou para realmente pensar sobre isso?

Muitos de nós olhamos com olhos desejosos para a possibilidade de fazer qualquer coisa sem prestar contas a ninguém, ou sem pensar “ah, não posso fazer isso, por causa daquilo”, ou tomar qualquer rumo como uma alma livre de qualquer amarra. Realmente, em cada um de nós existe um pouco desse anseio por ser “livre”, vivendo como acordamos com vontade de o fazer a cada dia. Mas será que isso é algo possível, bom, ou sequer verdadeiro?

Possível. Vamos conversar sobre a possibilidade de se tornar verdadeiramente independente. Hoje você acordou maior de idade, olhou na casa toda e não havia ninguém. Olhou seu celular e haviam notificações da página do seu emprego (você é autônomo). Mas, ora, falamos sobre três situações e já temos problemas quanto a não depender de ninguém: você precisou de alguém para ser gerado, para construir sua casa, para desenvolver seu celular e o aplicativo onde sua loja está instalada.

Bom. Pensando nessas quatro necessidades iniciais, você acha que seria bom ter que ficar responsável por todas elas sozinho (desconsiderando que ninguém pode se gerar)?

Verdadeiro. Não seria a independência, realmente, uma ilusão do nosso coração orgulhoso, que pensa poder viver sozinho?

“Mas, Gabriela, quando se fala de independência, não estamos falando disso, né? Independência é sobre seguir suas vontades, não precisar obedecer ou pedir permissão a ninguém para fazer o que eu quero.”

Sim, verdade. E não estamos falando de coisas diferentes. Quando pensamos em independência, pensamos mais sobre sonhos, ou perspectiva de vida. Mas às vezes isso pode ter raízes mais profundas do que notamos: nosso orgulho, nossa insubmissão, nossa vontade de tomar as rédeas das nossas vidas, que nós, como cristãos, não temos como fazer de verdade.

A individualidade é algo bem mais recente. A ideia de que o mais importante é o eu, o ser satisfeito sozinho, realizar seus próprios desejos sem a influência ou interferência de qualquer outra pessoa, porque, afinal, a vida é de quem? Mas quando olhamos para a Bíblia, vemos um Deus que se importa com a coletividade.

Casal, família, tribos, povos, Igreja. O Deus que se comunicava com indivíduos para que o coletivo fosse abençoado. Um Deus que valoriza, ordena e direciona uma vida de comunidade. “Deus faz que o solitário viva em família” (Sl 68:6a), “Pensemos em como nos estimular uns aos outros ao amor e às boas obras, não abandonemos a prática de nos reunir, como é costume de alguns, mas, pelo contrário, animemo-nos uns aos outros, quanto mais vedes que o Dia se aproxima.” (Hb 10:24,25), “Pois assim como em um corpo temos muitos membros, e todos os membros não têm a mesma função, assim também nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo e, individualmente, membros uns dos outros.” (Rm 12:4,5, mas todo o capítulo nos incita a uma vida comunitária de harmonia), e mais tantos exemplos possíveis de serem mostrados.

Em toda a nossa vida, e principalmente no início dela, precisaremos de alguém para algo. É literalmente inevitável. A única forma de sermos realmente independentes de qualquer pessoa (humana, já que não estou nem comentando nossa dependência de Deus, rs) seria morando na mata virgem, plantando seu próprio alimento, sem qualquer contato interpessoal. E, nesse cenário, não duraríamos muito. Além da possibilidade de um acidente acontecer e ninguém para nos socorrer, essa pandemia nos mostrou que não lidamos bem com a solidão. Não fomos feitos para ela, fomos feitos para a coletividade. É a nossa natureza.

Falando sobre a Eucaristia, em “Liturgia do Ordinário”, a anglicana Tish H. Warren diz: “A Eucaristia é uma refeição profundamente comunitária que nos reorienta de pessoas que são consumidores meramente individualistas para sermos pessoas que, juntas, são capazes de ser uma imagem de Cristo para o mundo. É claro, o próprio ato de comer nos lembra de que nenhum de nós pode sobreviver por conta própria. Se você está respirando, é porque alguém te alimentou. Nós nascemos famintos e completamente dependentes de outras pessoas para satisfazer as nossas necessidades. Dessa forma, o ato de comer nos reorienta de uma existência atomística e independente para uma existência interdependente. Mas a Eucaristia vai além. Nela, nós nos banqueteamos com Cristo e somos assim misteriosamente formados juntos num só corpo, o corpo de Cristo” (capítulo 5, p. 99–100).

A essência da vida cristã é uma vida de comunhão, de família: com Deus e com as pessoas. Dependemos de Deus e outras pessoas; prestamos conta a superiores e prestaremos contas diante de Cristo acerca do que fizemos com o fôlego que o Senhor soprou dentro de nós; somos pessoas sob autoridades; precisamos de convivência, e temos um Deus que nos ensina em como viver bem nessa condição. Nunca fomos orientados à individualidade, mas à comunidade; e, em uma comunidade, um dos seus maiores traços é a dependência: todos precisam de todos, porque ninguém é suficiente sozinho.

Dessa forma, precisamos olhar novamente para dentro dos nossos corações e nos perguntar se temos um coração amoroso, ensinável e transbordante em compaixão, como era o de Cristo. Em sua encarnação, nosso Senhor viveu família, liderou pessoas, conviveu, cuidou (e foi cuidado, principalmente quando bebê), sentou à mesa e comeu com pecadores, teve (tem) amigos. Além disso, nosso Deus é um Deus triuno: três em um, vivendo em perfeita harmonia, beleza e alegria. Para refletirmos um Deus tão complexo, belo e grandioso, vivemos em Igreja: muitas pessoas, de diferentes formas, vivendo juntas para a glória de Deus. Ninguém é Igreja sozinho, porque a Igreja, em sua pluralidade, e não solidão, consegue refletir a luz de um Deus que ama e vive família.

Esqueça a independência, o individualismo e a falsa liberdade. Nem nosso fôlego pertence a nós.

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