A fé, o ego e um evangelho que nos ofende

Gabriela Pontes
5 min readOct 31, 2021

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“Pois a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá pela fé.” — Romanos 1:17

“O evangelho é ofensivo porque a cruz se opõe a todos os esquemas de auto-salvação.” — Tim Keller

Evangelho significa boas novas, boa notícia. A mensagem de salvação por meio de nada além da fé no Cordeiro de Deus — Jesus, o Cristo — que viveu e derramou seu sangue em obediência ao Pai, que amou sua criação e entregou seu Filho amado pra salvá-la — Filho esse que foi ressuscitado pelo poder de Deus ao terceiro dia, vencendo a morte. É realmente uma ótima notícia.

Mas o evangelho também é ofensivo. Ele tira de nós toda a possibilidade de auto-salvação, de controle da própria vida, de sermos o centro da história, de recebermos a glória e qualquer louvor de merecimento. E isso ofende nosso ego carente de atenção.

Nós buscamos muitas formas de ser vistos, amados e notados. Nosso ego nos leva por esses caminhos, buscando ser alimentado, mas nunca fica satisfeito. Se recebemos alguns elogios em um dia, no outro precisamos do dobro. Sempre queremos reafirmações do nosso valor, e se não recebemos isso, nos vemos como o pior dos seres humanos. Nos tornamos reféns das opiniões e da aprovação dos outros para sermos felizes. E o próprio mundo também caminha por essa estrada. Quantos padrões temos que seguir para sermos vistos como belos? Quantas páginas precisam ter nossos currículos para sermos alguém na vida? Quantas viagens por ano para sermos interessantes? Quantos seguidores para sermos influentes e invejáveis? Quantas pessoas chorando e se odiando todos os dias por causa de fragmentos de vida de pessoas totalmente desconhecidas? Quanta autocobrança fazemos para nos satisfazer com um ideal de vida que, na verdade, é pura vaidade e carência?

E o evangelho nos ofende ao vermos Jesus nos chamando para sermos discípulos que o amam acima de tudo, que sofrem por ele com perseverança e que estão dispostos a largar qualquer coisa em obediência ao seu chamado. O evangelho nos ofende ao mostrar um homem humilde, um homem de dores, que vivia a obediência ao Pai, realizava as obras que o Pai lhe mandava fazer e pregava aquilo que o Pai lhe mandava ensinar. O evangelho nos ofende ao dizer que devemos ser discípulos desse homem Divino, e que toda a nossa vida deve apontar para ele — e não para nós mesmos.

O evangelho nos ofende porque ele não é sobre nós. Ele é sobre um Deus de amor e misericórdia, que deseja se reconciliar com os homens e livrá-los da ira que eles merecem receber justamente. Ele é sobre um Deus que se faz homem, nasce de uma virgem, vive uma vida comum durante 30 anos entre homens comuns, é batizado, inicia seu ministério, cura doentes, ensina pobres sobre o reino de Deus, liberta endemoninhados, ressuscita mortos, multiplica pães, tem amigos, desmente ensinos falsos, é entregue à morte e ressuscita poderosamente com um corpo glorificado. O evangelho é sobre um Deus que salva, e não sobre como nós podemos salvar a nós mesmos — na verdade, ensina exatamente que nós não temos como fazer isso.

O evangelho continuamente nos ofende, porque ele nos ensina que não somos o centro das atenções. Ele nos exige auto-esquecimento, sacrifício. E mesmo sendo um caminho difícil, não nos dá abertura para vanglória, porque não temos força para seguir a Cristo sozinhos, e o próprio Deus nos torna capazes de cumprir a jornada. Não é por nosso esforço que somos salvos, mas pela obra inteiramente feita por Jesus na cruz do calvário em favor de homens e mulheres pecadores, depravados, inimigos de Deus, miseráveis, sem qualquer bondade em si mesmos. O evangelho talvez seja o pior pesadelo para um egocêntrico.

Para muitos de nós, a realidade do evangelho é (e deveria ser) a esperança e o consolo. Um Deus que nos salva e cuida para que tenhamos força para o seguir em amor, que nos limpa de toda culpa e pecado, que nos livra do inferno, que nos promete vida eterna de paz, justiça e alegria, deveria acalentar o coração de todo aquele que ouve o evangelho. Mas para outros de nós, em vez de isso trazer descanso, traz angústia. Tudo isso nos mostra que não temos qualquer poder ou dignidade em nós mesmos para sermos salvos, que toda a obra da salvação é creditada justamente a Jesus, e nós não temos qualquer louvor para nós mesmos; que devemos viver nossas vidas apontando para o único que é digno da glória e dos olhares de todos, que é Jesus, e não nós mesmos; que somos indignos da eternidade com Deus e salvos por meio da graça e misericórdia do Pai, e não pela nossa grande força de vontade ou boas obras.

É uma realidade humilhante, como realmente deveria ser. A realidade do evangelho humilha nossos corações vaidosos e desejosos por atenção, nos chama para fora dos holofotes e nos faz caminhar de acordo com a boa, perfeita e agradável vontade de Deus — um ser superior a nós, mais sábio, santo, glorioso, poderoso, soberano e infinitamente digno de toda a adoração que nós mesmos buscamos para nós sem que mereçamos. A realidade nos lembra de que somos apenas pó, e que o nosso próprio fôlego de vida nos foi dado por Deus. Nada vem de nós mesmos; nada fazemos de novo sob o sol; nada que façamos nos limpa do pecado, nos torna justos ou santos diante de Deus; e nenhuma obra grandiosa que façamos vai nos tornar mais dignos do amor de Deus do que outros. Somos criaturas de Deus, feitas pelas suas mãos e criadas para o louvor dele. Não fomos feitos para nós mesmos, não fomos feitos para encontrar nosso lugar ao sol, não fomos feitos para criar algo novo, para deixarmos nossa marca no mundo ou sermos lembrados por gerações. Fomos feitos porque Deus é tão bom que ele desejava compartilhar a alegria de sua vida Trinitária com a criação. Fomos criados para desfrutar de Deus, para habitar com ele, para adorar a ele em todas as coisas que fazemos, diante da contemplação de sua dignidade e beleza. Toda a nossa existência é uma flecha que aponta para o Criador de todas as coisas, que deve ser amado e adorado simplesmente porque ele é digno disso.

Graças a Deus por Jesus Cristo, já que sem ele nenhum de nós poderia alcançar a vida eterna. Graças a Deus por Jesus Cristo que nos limpa, salva e restaura para viver em paz com Deus e com seu povo, sua família. Graças a Deus por Jesus Cristo, porque é apenas através dele que podemos ser feitos justos diante de Deus. E isso, meus amigos, é bom. Porque, por mais difícil que seja aceitar isso, somos miseráveis e incapazes de salvar a nós mesmos. Que o Senhor nos liberte do nosso egocentrismo, da nossa ardente necessidade de admiração e da nossa carência; que nos faça pobres de espírito — homens e mulheres que reconhecem sua própria miséria e, assim, a grandiosa dignidade, santidade e beleza de Deus; que nos torne humildes e nos capacite a seguir os passos de Jesus, de modo que vivamos cada dia para a glória de Deus — aquele que é digno da adoração; e que ele console nosso coração com a verdade, a esperança e a vida que recebemos em Jesus, nos levando a amá-lo em verdade e a sermos gratos por toda a sua obra de redenção. Amém.

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